quinta-feira, 7 de maio de 2009

Mudança na Lei Rouanet

Desde o final de 2008 está rolando uma proposta de mudança da Lei Rouanet, que além de financiar projetos culturais, caracteriza-se principalmente pelo incentivo fiscal. Li diversos artigos para me informar, incluindo o novo texto legal que ainda sofrerá mudanças até 14 de junho, e dei uma resumida para quem for leigo e caiu de pára-quedas no assunto (mas que, enfim, caiu). Para que meus amigos artistas saibam as diferenças entre o que era a lei e o que poderá ser, se aprovada.

VISÃO GERAL


A Lei Rouanet foi escrita em 1991 e aprovada 3 anos depois, levando ainda um tempo para ser posta em prática. Ela trata do investimento cultural brasileiro. Desde então, se o artista não tinha recursos para bancar o próprio espetáculo, ele poderia sobreviver:
  • com ajuda do governo (dinheiro público);
  • ou da empresa por iniciativa própria;
  • ou da empresa pelo sistema de dedução no imposto de renda.
Sendo mais específico:
  • pelos Fundos Nacionais de Cultura (FNC), que são recursos públicos diretos;
  • ou com recursos oriundos do incentivo fiscal (Mecenato), principal ponto a ser discutido;
  • havia ainda o Ficart, mas, até onde fiquei sabendo, é um mecanismo praticamente inativo;
  • ou ainda sem interferência do governo, numa iniciativa 100% privada; hoje, somente 3% de toda a verba investida na cultura nacional vem pela boa vontade dos empresários.
O coadjuvante da antiga lei

O ponto principal da reforma é o Mecenato. Pra quem não lembra, mecenas é uma pessoa alheia ao governo e que patrocina deliberadamente a atividade artística, podendo ou não ter retorno financeiro em cima do crescimento do fulano investido.

Como funcionava o mecenato, ou o incentivo fiscal? A empresa pega parte do imposto de renda (IR) que pagaria ao governo e, em vez disso, investe a quantia numa atividade cultural aprovada pelo ministério. A vantagem, para a empresa, é que ela poderá dizer à comunidade que incentiva a cultura do país e passar uma imagem de empresa boa, respeitável etc.

A empresa ganha sempre

Mas, você pergunta: Ué, para o governo não dá no mesmo que pegar a grana direto de cofres do Estado para financiar os projetos? Não. A lei, ao que parece (a lei nunca é o que parece) foi criada para dar mais autonomia à cultura, de descentralizar o incentivo cultural, tirar das mãos do governo a responsabilidade de dizer quais projetos artísticos merecem ser destino dos cofres públicos.

Para a empresa não há nada a perder, afinal, ela teria que pagar esse imposto de qualquer jeito. Só tem a ganhar, porque com o dinheiro que seria do governo ela constrói a sua própria imagem de marca. E mesmo se investir num espetáculo que seja um fracasso, tudo bem: o dinheiro não era dela mesmo...

Tudo nas mãos das empresas

Na atual lei, há duas cotas de incentivo. A empresa decide se o dinheiro será 100% incentivo fiscal ou se será apenas 30% (os 70% restantes viriam do bolso da empresa, não do imposto pago). PS: algumas artes têm cota fixa definida pelo governo. Exemplo: financiar música erudita é cota de 100%; música popular é 30%.

Em geral os projetos levam 100% da verba de incentivo fiscal. Segundo os dados, em 2008, a cada R$100 investidos em cultura, R$90 vieram de incentivo fiscal (verba que seria destinado ao governo) e apenas R$10 das empresas por vontade própria.

Vou ilustrar a questão das cotas. Se uma empresa tiver que pagar R$ 1.000.000 de IR ao governo, ela pode pegar esse milhão e investir num projeto cultural - peça, construção de museu, trazer um grupo internacional de música etc. - e colocar sua marca na divulgação do projeto.
  • Pela cota de 100%, essa grana será o total do projeto e a empresa não desembolsará nada mais.
  • Pela cota de 30%, o milhão é apenas 3/10 do montante final; a empresa teria que desembolsar mais uns dois milhões.
As empresas só podem investir em projetos aprovados pelo Ministério da Cultura. É uma pena que 80% dos artistas aprovados não encontram mecenas, porque suas propostas não atendem a objetivos mercadológicos...


OS PROBLEMAS DA PRIVATIZAÇÃO CULTURAL

A lei é acusada de regularizar a privatização cultural e também por transferir às empresas privadas a utilização dos recursos públicos. O finado Augusto Boal, diretor, dramaturgo e ensaísta brasileiro, em entrevista para Ana Paula Souza do Terra Magazine, disse que a Lei Rouanet assassinou a criatividade do teatro. "Ao transferir do governo, que representa o povo, para as empresas, a decisão de onde investir, a Lei substitui o pensamento criativo pelo publicitário. Essa lei tem que acabar."

Já os empresários dizem que, sem a lei, a cultura iria morrer. Mas se esquecem que a isenção fiscal representa R$ 1,4 bi por ano. Sem a lei, o imposto voltaria ao cofre público e poderia muito bem ser investido na Cultura.

Problema 1 - Enriquecimento às custas do incentivo

Mesmo com uso de dinheiro público, o acesso aos espetáculos não era tão público assim. O Ministro da Cultura Juca Ferreira se aborreceu com casos como o de Hamlet e Cirque du Soleil. A peça com Wagner Moura foi bancada com dinheiro público (de incentivo). No entanto, o ingresso custava R$80.

O mesmo vale para o Cirque du Soleil: singelos R$300 para ver os canadenses. O preço da montagem, da viagem, o salário e tudo mais já havia sido pago por um dinheiro que tem como destino a população. Você, que paga seu imposto e que foi ver a peça, praticamente pagou duas vezes o espetáculo. Pior ainda é quem não foi, porque pagou uma vez e não viu.

Problema 2 - Interesses mercadológicos

Artistas reclamavam que, mesmo quando seus projetos eram aprovados pelo Ministério, ficava difícil encontrar uma empresa disposta a bancar, porque geralmente o departamento de marketing incentiva somente aquilo que traz boa associação de marca, grande divulgação de imagem etc.

Por exemplo: a Nestlé patrocinaria uma espetáculo teatral que fale sobre a fome? A Petrobrás incentivaria um filme que trate da poluição ambiental pelos automóveis? Ou o Bradesco associaria sua marca a uma exposição que fale da burocracia e mau atendimento dos bancos? Questões sociais e novas linguagem ficam marginalizadas pela prática atual da Lei Rouanet.

Problema 3 - A concentração de verba, classe e estilo

São Paulo e Rio de Janeiro representam 80% de todo o dinheiro investido em cultura no país. Uma distorção, mesmo levando em conta aspectos demográficos. As empresas investem onde há mais amplitude comercial.

Metade da verba destinada a projetos culturais fica nas mãos de 3% de artistas. As empresas preferem "investir" em alguma peça burguesa que tenha ator global do que incentivar um espetáculo que traga desconstrução e reflexão. No final, o dinheiro público vai bancar justamente os artistas que menos precisam de ajuda do governo.

A maior parte dos projetos são de cinema ou teatro. Cultura é mais que isso. É literatura, artes plásticas, exposições, museus, eventos, saraus, música...


A PROPOSTA DE JUCA FERREIRA

O Ministro e sua equipe (provavelmente ouvindo artistas amigos) pensou na situação e criou um texto que reformula a Lei Rouanet. Até aí, nada de anormal. Porém, a forma como ele colocou isso em pauta é que merece atenção.

Democratização da cultura

Num caso raro de se ver em política, o ministro abriu diálogo publicamente a respeito de suas propostas. O texto ficou durante 45 dias disponível para download no site do Ministério da Cultura. Um e-mail e um blog foram criados para receber sugestões.

Além disso, Juca Ferreira rodou o Brasil inteiro (eu acompanhei sua agenda nesse último mês) levando esclarecimentos sobre a nova proposta a todos os estados, fazendo debates com a classe empresarial, política e artística. E, ao contrário do que foi dito na mídia, houve diálogo, sim, e apoio da maioria dos presentes.

E quais as mudanças, afinal?

Os objetivos da nova lei são
  • fortalecer os fundos nacionais de cultura;
  • participação dos governos locais para gerir a verba destinada aos projetos;
  • criar Comitês Nacionais de Incentivo à Cultura, Cnics, e ainda por cima divididos em setores artísticos, para dar representatividade e força para cada linguagem cultural (comitê para o teatro, para o circo, para artes plásticas, para letras, cidadania etc);
  • mais participação decisória dos setores artístico-culturais;
  • criar novas faixas de cotas;
  • promoção e exportação da cultura;
  • implantação do Vale-Cultura: R$50 mensais individuais pra usar em eventos culturais.
    PS: esse item acabou separado da votação e instituído como outro projeto.
Ou seja, se tudo der certo, vejam o que podemos ganhar com isso:
  • as propostas artísticas serão julgadas por artistas, não burocratas;
  • um projeto circense terá tantas chances quanto um teatral, literário ou o que for, porque cada um será julgado por um comitê próprio, não por um geral;
  • os governos locais terão mais participação na cultura estadual e municipal, dando mais autonomia e evitando a concentração de incentivo em determinadas área; entre outras vantagens.

Acessibilidade

O ministro quer que, quanto mais dinheiro do povo estiver metido na história do patrocínio, mais acessível terá que ser o projeto cultural, tanto financeiro quanto geograficamente.

Exemplo de acessibilidade financeira: se 100% da verba destinada ao projeto vier de incentivo fiscal, é justo que o projeto seja grátis ou muito barato.

Acessibilidade geográfica: pulverizar o incentivo cultural às diversas e distintas regiões do país, tentando separar a Lei Rouanet da visão mercadológica que domina a prática cultural.

Mais cotas, com decisão do MinC

Além disso, uma grande mudança é o sistema de cotas. Em resumo:
  • Antes o projeto poderia ter 30% ou 100% de verba de incentivo fiscal. A empresa entra com 70% de verba dela, não do IR; ou então entra com 0% dela e tudo será dinheiro do IR. A empresa é quem escolhia essa faixa.
  • A proposta do ministro é que haja cotas para 30, 60, 70, 80, 90 e 100%. A empresa tira do próprio bolso 70, 40, 30, 20, 10 ou 0% e o restante vem do dinheiro do IR. E dessa vez é o governo que vai decidir em que faixa o projeto se enquadra.
E aí entra a questão da tal acessibilidade. Vai usar 100% da minha grana? Então trate de levar esse projeto para o máximo de pessoas possível.

O calcanhar de Juca Ferreira

Um dos maiores problemas da proposta foi a forma como a reforma foi escrita. Seus termos vagos foram o calcanhar de Aquiles, e abriram brecha para seus maiores críticos: o empresariado e mídia. Os artistas também ficaram receosos. A razão é uma só: se o texto é dúbio, abre margem para interpretações interesseiras, obscuras.

O que é um fim não oneroso? O que é uma alta relevância cultural? Essas são expressões encontradas nas novas diretrizes. Com tal subjetividade, há risco de reprovação (ou aprovação) de um projeto por motivos que não serão claros.

Além disso, muitos artigos e parágrafos ainda estão pra ser definidos, e o próprio texto chuta a bola para o devir. Assim fica difícil controlar o frio na barriga. Por exemplo, qual o sistema de pontuação que definirá quem leva a verba de patrocínio? Quais os parâmetros para formar as Comissões Nacionais de Incentivo à Cultura (Cnics)?

A classe está insegura com o novo texto, e com razão. Amarrar essas pontas é um dos objetivos do ministro nesse intervalo entre o 6 de maio (prazo para enviar propostas de mudança no texto) e o 14 de junho (data marcada para enviar novo texto ao Congresso).


O DEBATE


Por um lado, os artistas em geral exigem mais clareza do texto. Do outro, empresários reclamam que eles perderão autonomia. Vejamos os motivos.

Quem está a favor?

A maioria dos artistas e governo aliado. Se aprovada, a tendência é por um lado democratizar o acesso de artistas às verbas públicas, e por outro levar mais cultura, nas diversas formas, ao povo em geral. Mas, é claro, isso só vai acontecer desde que haja correções no texto que o tornem mais objetivo e menos suscetível a interpretações dúbias.

Quem está contra

Artistas dinossauros, porque a vida toda foram beneficiados pela lei e por empresas amigas, e agora correm o risco de terem que se renovar. Justamente eles são os que menos precisam de dinheiro público para sobreviver.

A Globo também está contra, porque seu papel na orientação cultural do país é inegável, e com esta nova lei seu poder será menos concentrado.

E as empresas mecenas (mecenárias?), que temem o dirigismo e agora não poderão fazer da lei uma pura estratégia de Marketing.

Vamos às suas principais críticas?

Crítica 1: o Dirigismo Cultural

O maior medo deles é dirigismo cultural, ou seja, medo que o governo "decidia" o que é cultura, o que vale a pena ser investido, o quanto será investido, onde será investido etc. sem dar livre escolha às empresas.

Hoje, o investimento em cultura é visto como estratégia mercadológica, pois se apropria da imagem de um artista para divulgar a própria marca, dizendo ainda por cima "veja como somos legais, a empresa Xis investe na cultura nacional".

Mas vejamos: já existe dirigismo da mídia, do marketing, do monopólio televisivo. Esse medo é uma hipocrisia: as empresas e a mídia estão com receio de perder poder. E outra: nenhum Estado, por mais totalitário que seja, conseguiria ser dirigista, da forma como alerta o empresariado. "Como é que vai haver dirigismo cultural se boa parte dos bens culturais é feita pela Globo, Record e Sony?" (Renato Ortiz, psciólogo e professor na Unicamp, em entrevista para o jornal O Povo)

Crítica 2: a distribuição

Novamente sob pretextos mercadológicos, a distribuição de verba seguindo a demografia do Brasil não interessa às empresas, pois no geral "ninguém quer enterrar dinheiro no interior do Piauí" (palavras do ministro, que foram retiradas do contexto e utilizada por diversos veículos da grande imprensa).

Mas a cultura não está apenas nas metrópoles. Muito do que se resgata da identidade nacional está em comunidades abastadas onde mal se chega água encanada. Isso mostra mais uma vez que a cultura deve ser gerida de acordo com os representantes da população, porque, até onde sei, os empresários não foram eleitos democraticamente por nós.

Crítica 3: Autoritarismo

Muitos jornais estão dizendo que o MinC tem sido autoritário e quer impor suas diretrizes sem haver diálogo. Mas isso é a mais absurda das acusações.

Primeiro, porque foi aberto um canal tipo ombudsman sobre a nova Lei. É possível manifestar-se tanto por e-mail quanto pelos comentários do Blog. Desde que o texto foi publicado (e pronto para download), qualquer um poderia enviar suas sugestões ao Ministério. O prazo foi 6 de maio.

Segundo, porque o site do Ministério tem publicado não só a agenda do ministro, como divulgado matérias tanto contra quanto a favor da nova proposta. Qual grande veículo faz isso hoje em dia no Brasil? Acompanhei por quase dois meses o leitor de RSS e lá encontrei desde artigos de apoio d'O Povo e Fórum até as previsíveis críticas do Globo e Folha.

Além disso, há um blog que acompanha o ministro e esclarece dúvidas a respeito da nova lei.

E, por fim, e não menos importante, desde dezembro de 2008 Juca Ferreira tem se empenhado em esclarecer em todo o Brasil quais são seus objetivos. Nos debates ele ouviu representantes de todos os grupos interessados e, inclusive, seu assessor publica no
site um resumo das discussões levantadas.

Isso é ser autoritário?


PONTOS ESQUECIDOS


É importante que a lei fique mais conhecida; não são somente gigantes empresas que podem patrocinar; médias e grandes também deveriam. O novo sistema de cotas poderá aumentar essa possibilidade.

Outro ponto: se o dinheiro é público, devemos fazer as seguintes perguntas sugeridas pelo diretor do Sesc-SP. "É interesse público? Estou a favor. É interesse de orientar o uso? Não estou muito a favor. É interesse privado? Não estou nem um pouco a favor." (Danilo Miranda, diretor geral do Sesc-SP, para especial O Povo)

E ainda mais importante. Estamos discutindo a arte como algo palpável, como se fosse um prédio ou um incentivo para fabricação de carros. Como disse Marco Antonio Rodrigues (diretor teatral e fundador do Folias D'Arte), é preciso discutir o conceito da arte, o que é que deve ou não ser subsidiado. "O que é cultura? Pra quê ela serve? Confunde-se cultura com entretenimento, mas ela reflete a nossa forma de viver, os nossos desejos coletivos." (entrevista pela revista Fórum)

Hoje o Conselho Nacional de Incentivo à Cultura é formado meramente por técnicos. É preciso que artistas julguem artistas. Que as Cnics cumpram esse papel, pois de nada adianta um artista ser avaliado por um engenheiro.

No geral, parece discussão Socialismo x Neoliberalismo na cultura. A mão de ferro contra a mão invisível. Enquanto a cultura for vista como "bom negócio" (palavras em carta enviada ao MinC pela Fundação Roberto Marinho) e não como bem de formação de identidade nacional, a cultura corre o risco de se tornar qualquer coisa. Esse é o maior receio de qualquer artistas que se enxergue como tal.

Somente o cético dirá: quem é o brasileiro que quer uma identidade nacional forte?

É por isso que abraço essa proposta sem ceticismo. Estou torcendo. Sou artista e isso me interessa.
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Por favor, sei das limitações de minha pesquisa. Então, qualquer equívoco que eu tenha cometido, me avise no comentário. Obrigado pela leitura e volte sempre!
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Para saber mais, clique nos links com o botão direito do mouse e abra numa nova janela. Faça uma busca sobre o tema no site do Ministério da Cultura (link), no blog da Reforma da Lei Rouanet (link) ou ainda pelo Observatório da Imprensa (link). Pode ver que não há "dirigismo jornalístico" nas publicações do site. Recomendo este artigo também (link).
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