Pecado capital.
Querido diário sagrado,
estou muito triste com o pessoal que eu abençoei. Eu nunca tive Barbie, nem triciclo, nem almofadas de Buda, nem nada disso que todas as crianças bem de vida possuem como regalias. E pra quê? Tudo para poder me dedicar a essa outra "eu" que vivia dentro de mim. E que, aliás, vivia sem eu ter pedido. Sem pagar pensão, nem dar satisfação. Por causa dela, as pessoas me obrigam a me vestir assim, toda dondoca e feiosa.
Tudo isso acabou. Mas não sei se é bom ou ruim.
Parece que a menina que vivia em mim não tinha passaporte internacional e teve que ficar no Nepal. E quando eu entrei no avião, sem que eu percebesse ela saiu de mim, como ar que a gente expira. Ainda bem, porque eu fui para aquele país da estátua da liberdade, e, não é que eu me senti mais livre? Sem toda aquela multidão andando atrás de mim, finalmente pude comer no McDonalds — o McChicken — e descobrir o que as crianças parecidas comigo, em idade e importância, podem saborear.
Vi umas meninas mais ou menos do meu tamanho encostando a boca na boca de uns meninos que, se fosse lá em casa, seriam meus servinhos. Fiquei horrorizada, com vontade de abençoar aqueles coitados, mas ao mesmo tempo curiosa. E, pra falar a verdade, eu estava mais interessada é na Barbie que eu vi naquela casa colorida e gigante, cheia de brinquedos.
Ai, que confusão!
Quando voltei para casa, o pessoal já não queria que eu abençoasse. Pararam de me reverenciar, e por isso estou triste. Imagina, meu querido diário sagrado, depois de tanto tempo, é injustiça eu voltar à condição normal de criança normal. E eu nem vazei ainda! — Não sei se já te contei, mas dizem que se eu ficasse pra sempre em casa, a menina ia morar até o dia que meu xixi virasse vermelho. Acho que a Kumari não gosta dessa cor; aí então as pessoas elegeriam outra garota pra ocupar, numa eleição com o mesmo olhar sagrado que têm para me proibirem de hospedar a menina.
Ao mesmo tempo que fiquei feliz de conhecer a felicidade nas coisas, me arrependo por ter conhecido. Antes a vida era bem mais fácil, e eu não tinha que trabalhar. Hoje, estou me sentindo como aquela deusa pagã, demoníaca, que é a Eva. Nos contos de terror que meus tios narravam, diziam que essa mulher uma vez deixou escapar tudo que tinha, por causa de sua curiosidade, e guardou só a esperança numa caixa grande e preta. Falam que eu me ocidentalizei, ou seja, me demonizei, e deixei escapar tudo de bom que tinha em mim. Mas a única coisa boa era a Kumari, e eles já mandaram-na pra outra menina, que agora me abençoa.
Eu só queria poder escolher, mas minha religião não permite. Por isso, fico com essa vontade guardada em mim, a única eu que ainda mora nessa caixinha de Mc Lanche Feliz de frango.
Com amor,
Sajani Shakya
PS: na foto, euzinha, tirada pelo telefone que minha tia comprou lá no país do Pateta.
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estou muito triste com o pessoal que eu abençoei. Eu nunca tive Barbie, nem triciclo, nem almofadas de Buda, nem nada disso que todas as crianças bem de vida possuem como regalias. E pra quê? Tudo para poder me dedicar a essa outra "eu" que vivia dentro de mim. E que, aliás, vivia sem eu ter pedido. Sem pagar pensão, nem dar satisfação. Por causa dela, as pessoas me obrigam a me vestir assim, toda dondoca e feiosa.
Tudo isso acabou. Mas não sei se é bom ou ruim.
Parece que a menina que vivia em mim não tinha passaporte internacional e teve que ficar no Nepal. E quando eu entrei no avião, sem que eu percebesse ela saiu de mim, como ar que a gente expira. Ainda bem, porque eu fui para aquele país da estátua da liberdade, e, não é que eu me senti mais livre? Sem toda aquela multidão andando atrás de mim, finalmente pude comer no McDonalds — o McChicken — e descobrir o que as crianças parecidas comigo, em idade e importância, podem saborear.
Vi umas meninas mais ou menos do meu tamanho encostando a boca na boca de uns meninos que, se fosse lá em casa, seriam meus servinhos. Fiquei horrorizada, com vontade de abençoar aqueles coitados, mas ao mesmo tempo curiosa. E, pra falar a verdade, eu estava mais interessada é na Barbie que eu vi naquela casa colorida e gigante, cheia de brinquedos.
Ai, que confusão!
Quando voltei para casa, o pessoal já não queria que eu abençoasse. Pararam de me reverenciar, e por isso estou triste. Imagina, meu querido diário sagrado, depois de tanto tempo, é injustiça eu voltar à condição normal de criança normal. E eu nem vazei ainda! — Não sei se já te contei, mas dizem que se eu ficasse pra sempre em casa, a menina ia morar até o dia que meu xixi virasse vermelho. Acho que a Kumari não gosta dessa cor; aí então as pessoas elegeriam outra garota pra ocupar, numa eleição com o mesmo olhar sagrado que têm para me proibirem de hospedar a menina.
Ao mesmo tempo que fiquei feliz de conhecer a felicidade nas coisas, me arrependo por ter conhecido. Antes a vida era bem mais fácil, e eu não tinha que trabalhar. Hoje, estou me sentindo como aquela deusa pagã, demoníaca, que é a Eva. Nos contos de terror que meus tios narravam, diziam que essa mulher uma vez deixou escapar tudo que tinha, por causa de sua curiosidade, e guardou só a esperança numa caixa grande e preta. Falam que eu me ocidentalizei, ou seja, me demonizei, e deixei escapar tudo de bom que tinha em mim. Mas a única coisa boa era a Kumari, e eles já mandaram-na pra outra menina, que agora me abençoa.
Eu só queria poder escolher, mas minha religião não permite. Por isso, fico com essa vontade guardada em mim, a única eu que ainda mora nessa caixinha de Mc Lanche Feliz de frango.
Com amor,
Sajani Shakya
PS: na foto, euzinha, tirada pelo telefone que minha tia comprou lá no país do Pateta.
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